terça-feira, 17 de junho de 2008

Ganesha

Ela levantou meio dia, colocou seus chinelos do tipo sem dedo marrom, deixando a vista sua meia azul calcinha, e foi tomar café. Não havia fio de cabelo que estivesse em sua determinada, apresentável, posição. Parou rente a pia, por dois minutos pensou ser uma boa idéia lavar aqueles pratos de sopa de mandioca de cinco dias atrás, mas sentiu pena de afogar as formigas e se convenceu que esperaria mais um dia.
Com o canto do olho semi aberto, ainda de sono e medroso de luz, olhou pela janela da cozinha e viu no quintal algo reluzente. Uma cor laranja avermelhada, de forma arredondada e de difícil denominação à primeira vista. Hesitou, não ia para fora verificar um objeto brilhante, que nem sequer ruído fazia, e não seria algo valioso porque ouro não cai do céu.
virou-se para a geladeira, encarou-a, pensou que ela já estava velha demais. Sem três dos pés, com o frizer quebrado há 8 meses, a borracha solta, o que a deixava vazando e alagando toda a cozinha. Talvez fosse bom pensar em comprar uma nova, pensou ela consigo.
Umas mordidas no pão de forma com maionese, uns goles de água de torneira e ela se lembrou do quintal. O que será aquilo? refletiu.
Levantou-se do banquinho de madeira de uma vez só, enfiando o pão inteiro na boca e caminhou até a porta que dava para a parte dos fundos da casa. Saiu e avistou o objeto desconhecido. Por uns raros segundos teve medo, podia certamente ser um etê disfarçado de bibelô brilhante! Ou uma bomba do Al-Qaeda em fase de teste. A casa dela certamente era um alvo interessante, porque nada ali interessava. Sentiu-se tola, esfregou o nariz, fez com a mão um cap, encobrindo seu rosto do sol que cegava jorrando luz.
Chegou ao objeto imóvel, e observando de cima não acretidou no que era. Abaixou-se e riu. Uma cabeça de elefante! De elefante! Esculpida em pedra, em vidro, não sabia. Mas como teria aquilo ido parar ali?
O dia da sopa, com certeza! pensou ela, algum de seus únicos três amigos devia ter esquecido. Era estranho pensar que eles teriam uma cabeça de elefante avermelhada. Não era útil, e muito menos bonita! Aquele dia tinham colocado um tapete verde musgo estendido no chão do quintal, jogaram umas almofadas sem capa e passaram a noite toda bebendo cognac e bloodmary ao som do pior reggae estrangeiro que podia existir. Mas em nenhum momento havia elefante, cabeças sim, jogadas nas almofadas, rodando e rodando feito gira-gira. Mas nada de elefantes vermelhos!
Ela pegou aquela coisinha na mão, estava gelada, e pesava mais do que havia imaginado. Deve ser vidro...trouxe mais próximo dos olhos e viu que a trompa não era circular e sim pontiaguda. Achou melhor ter mais cuidado. Entrou novamente em casa a apoiou a cabeça de elefante na estante do quarto, perto de dois livros empoeriados.
Quando bateu sete horas da noite no relógio de cucu da cozinha ela se lembrou da louça, imaginou que já era hora de formiga estar na cama e que aquele cheiro de mandioca podre já tinha enjooado até mesmo os lixeiros da rua, então respirou fundo, estralou os dedos das mãos, fez uma careta sem platéia e levantou com muito esforço do sofá bege de dois lugares que ocupava a sala inteira e metade do hall, quando chegou até a cozinha viu a poça de água que havia se juntado com a poça do dia anterior e formado um pequeno lago em frente a geladeira, e sentiu um pouco de pena de si mesmo. Aquela vida toda era um monte de porcaria. Desistiu da louça, visto que teria que construir um navio para atravessar até o outro lado da cozinha e foi para o quarto.
Deitada na cama de olhos abertos avistou o elefantinho. Pelo menos algo diferente numa quarta-feira vazia. Diferente, mas tão vazia. Vazia, sem sentido, como aquela cabeça. Podia ser a sua cabeça. Seus três amigos não estavam ali, não podiam beber com ela. Não havia mais nada para beber também. As garrafas estavam vazias, assim como os programas de televisão. E a geladeira certamente estava vazia. Só a pia estava cheia, cheia do vazio que tinham deixado os amigos que partiram bêbados. Olhou seus pés, aquelas meias vazias. O vazio em seus pensamentos foram agonizando-a.
E estava tudo tão vazio que ela quis preencher-se. Foi até a caixa de remédios pegou todos, engoliu muitos, e depois outros a seco. Engoliu mais uns cinco, caminhou até a estante pegou o elefante e deitou-se na cama com seu vazio.
Com a trompa e sua ponta fina marcou em seu punho as linhas que seguiram a vermelhidão daquela cabeça perdida. Cantou para a pequena estatueta suas músicas solitárias. Era a sua companhia, tinha sido um presente de Deus. Desafortunada ela e sua cabeça, desafortunado elefante de Ganesha.

4 comentários:

Anônimo disse...

Laura!

Admita carissíma que ai tem sinais de sua biografia hã? rs

Você ou seus textos... O que é mais doce?Minha sensibilidade deve ter diabete, por que você me dá um tipo de morte espiritual! Isso é bom! :D

WB/LG

Wagner Miranda disse...

os presentes do acaso são os mais valiosos, especialmente quando não têm um aparente sentido a primeira vista.

Anônimo disse...

É tão triste o seu texto...E explica tão bem o que é a solidão...É tão profundo!!! Mas muito triste...

Anônimo disse...

Eu gostaria de perguntar como você escolhe os assuntos que você coloca?
por favor responda-me pelo e mail pet_b08@yahoo.com.br