domingo, 15 de junho de 2008

vinha, só minha

A madrugada batia à minha porta, eu renegava sua presença fria, mas invadia-me mesmo assim. tomava-me em seus braços, acariciáva-me congelando meus dedos brancos. soprava aos meus ouvidos promessas de que estava de passagem, mas demorava-se ali. Preenchia meu quarto, bagunçava meus papéis, abria a janela e a lua me via nua, a tremer.
Eu cansava quase sempre da visita. Mais quando com ela vinha a solidão. Esta era quieta, não fazia ruído, não chutava minhas roupas amarrotas, não desmarcava meus livros. Apenas sentava-se na minha cama de pernas cruzadas e lá ficava de cabeça baixa, quase como um fantasma. E o seu silêncio dóia. Era tão forte que alguns dias vi a madrugada ir-se embora de fininho, envergonhando-se de seus grilos e corujas.
Eu não me atrevia a falar, menos ainda a expulsá-la, acostumei-me a sua companhia, escutava comigo Bach e não desgostava. Não podia dormir na sua presença, porque ocupava a cama, então apoiava meus cotovelos na escrivaninha de madeira escura e com os olhos cerrados sentia o vazio dos meus pensamentos.
Um dia tomei uma taça de vinho branco. outra em seguida, e então mais duas. Nesse dia dancei junto com a madrugada, e ela nunca tinha sido tão quente, me pus descalça a pular com as almofadas e a tocar as harpias dos anjos. mais uma taça. eu já não via minhas mãos, porque dançavam depressa, corriam pelo quarto com lenços coloridos. uma taça de vinho branco. pulei na cama, voei com as corujas surdas para todos os cantos. uma taça. Ri tão alto, tão longo, ri das estrelas, dos amores, das calçadas...e então virei madrugada, e ao ver que se aproximava a solidão, sai de fininho, cri cri.

4 comentários:

Wagner Miranda disse...

incrível é poder dançar
na escuridão
sem deixar de sonhar em cores
diante do ruído branco
da solidão

w.

Anônimo disse...

As Hárpias dos anjos?

Prefiro pensar que foi algo especial para mim! rs...

Laura! Belissíma escritora, com belissíma capacidade literária!

Anônimo disse...

Cultive o seu poder de emocionar!

Anônimo disse...

Ah...momento difícil, inspiração fácil. Momentos geniais não, Laurinha? Fazer comentários poéticos da sua poética é tentador. Mas vou me abster e tentar não reduzir tudo ao inefável como a insustentável leveza do ser.
Gosto muito de como você escreve. :) Me faz pensar em como é que funciona essa cabeça linda.
Beijos